Diz um ditado humano que "a relva é sempre mais verde no quintal da vizinha".
Quantos da nossa espécie, que vivem a sua vida rodeados de conforto, protecção e segurança, não desejariam um pouco da nossa liberdade?
E quantos de nós, que vivemos na rua, não desejaríamos ter a vida deles.
Mas, será que trocaríamos tudo o que temos (e o que não temos), para mudar para o outro lado? Aquele que nos parece mais apetecível, desejável, tentador?
Ou quereríamos, passado um tempo e, às primeiras dificuldades, voltar à vida antiga?
É mais fácil um gato de rua habituar-se a uma casa, que o contrário. Mas nem sempre corre bem.
Nem sempre estamos dispostos a deixar as ruas, onde vivemos durante anos, e a perder muito daquilo que conquistámos.
Ainda que não seja fácil viver nas ruas.
É preciso sorte.
Esta noite, dormi neste cartão, deixado aqui neste terreno, ao pé de um mal cheiroso contentor do lixo. Claro que uma caminha quentinha era muito melhor. Mas tive sorte, porque foi esse cartão que me protegeu do frio que se fez sentir até de manhã.
É preciso sorte com os humanos que vivem onde nós andamos.
Há os que nos querem ver pelas costas. Os que correm atrás de nós para nos expulsar. Os que nos agridem. Os que deixam comida envenenada para nos matar.
Mas também há os que nos tratam bem, dão-nos alguns mimos e até nos oferecem uma refeição.
Nunca sabemos quando vamos encontrar alimento, ou quantos dias vamos ter fome mas, se tivermos sorte, há sempre quem nos deixe qualquer coisita para comer.
E não nos julguem mal agradecidos, ou esquisitos, se nem sempre devorarmos aquilo que nos deixam para comer.
É que, apesar de tudo, e da vossa boa vontade, há coisas que ninguém sequer se atreveria a provar. E não é por sermos gatos que já podemos comer tudo. Há coisas que nos fazem mal, que nos deixam doentes. Mas, ainda assim, agradecemos.
É preciso ter sorte, com os locais que escolhemos para ficar.
É preciso não arranjar guerras com outros gatos, sobreviver aos cães que parecem querer devorar-nos, fugir dos carros que passam e fingem não nos ver, ou não nos vêem mesmo, e nos podem matar em segundos.
É preciso ter sorte de encontrar um abrigo, nem que seja só por aquele dia, ou aquela noite.
Mas como poderíamos deixar de agradecer a nossa liberdade?
Como poderíamos não ser gratos pelos imensos banhos de sol que apanhamos, apesar dos muitos dias de frio e chuva?
Como poderíamos não ser gratos pelo céu estrelado à noite, apesar das muitas noites em que as nuvens as tornam escuras e assustadoras?
Como poderíamos não ser gratos por fazer aquilo que nos apetece, sem estar presos, sem andar constantemente a caminho dos monstros de branco, que só querem o nosso bem mas que nós gostamos é de ver longe de nós?!
Como poderíamos não ser gratos pelos amigos e companheiros que vamos fazendo por aí?
Como poderíamos não ser gratos por todos os sítios que descobrimos? Pelos insectos, lagartixas ou ratos que perseguimos?
E como poderíamos ajudar aqueles que se atrevem a aventurar-se na rua, nem que seja por umas horas, se não estivessemos, também nós, já habituados a esta vida?
Se estamos mais expostos aos perigos? Talvez.
Mas quantos gatos não correm mais perigos nas mãos dos humanos que os adoptaram?
Acho que o que todos nós queríamos, no fundo, era ter o melhor dos dois mundos.
Como nem sempre é possível, esperamos que a sorte nos leve onde conseguirmos ser felizes, com aquilo que nos for dado, e permitido.